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17/02/2010

a memória

 
 
 
 
 
 
 
 
A memória



Um dia senti que a memória se sente, se impõe, deixam marcas. Como uma nave do tempo da qual podemos entrar para observar esse tempo que se respirou um passado.

Porque a memória é um substantivo extenso. Não importa o quanto nos afastemos do seu centro de gravidade, somos invariavelmente, atraídos ao seu núcleo, por sua força invisível que nos atraí, como as ondas pelos ventos, com um som agudo atravessando uma manhã silenciosa.



Foi o que inexplicavelmente me ocorreu alguns dias atrás, quando estava no aeroporto. E, nesta memória recupero, sem saber como, a imagem de minha avó. Quando num dia remoto da minha infância eu a conheci.

Neste dia, ela estava empurrando desajeitada mente um carrinho de bagagem do aeroporto, talvez porque em um lance de olhar, folheando uma revista à espera de meu vôo, tenha olhado para alguém com suas características, não sei, ou talvez por esses labirintos que trafegam os nossos afetos, ela ressurge em minha mente.



Minha avó : - Uma senhora alta, imponente, vestida com um velho e surrado sobretudo de lã. Olhei para ela com interesse. Estava como um viajante recém-chegado, olhando para todos os lados. Depois percebi que meu pai correu até aquela mulher, antes mesmo da porta do saguão abrir, abraçaram-se e o vi chorar. Vinte anos ou mais os separaram. Vinte anos de um mar distante.

Os lábios da minha avó se transtornam, ela treme, assim como todo o seu corpo. Eu não consigo entendê-la quando ela se curva e me beija, falando algumas palavras desconexas. Era uma língua diferente. Meus irmãos mais novos se assustam, meus pais tentam acamá-los dizendo ser a nona quem estava aqui.

Mas como poderia saber? Eu, com os meus dez anos de idade, olhava para aquela mulher, com seus cabelos lustrosos e brancos, com botas de cano alto, um casaco estranho, longo, quente, que enrodava-me enquanto estava a seu lado. Olhava e não entendia.

E é inegável que todo o processo começou com este olhar. O olhar que abre um caminho, uma vereda de sugestões, que percorria pela minha surpresa e curiosidade. Onde não sei de onde, testemunhei o primeiro olhar amoroso daquela mulher. Não poderia esquecer deste olhar. Não poderia esquecer de tudo isso, ao relembrar este olhar de encantamento, a vagar por mim. Como um silêncio especial, um silêncio com o que registramos sem que nos mostrem ou expliquem, como se o tempo ali se fraturasse e corresse em várias direções a uma só vez, e se fixasse num ponto de convergência, num tempo puro, nem verbal, nem gestual, apenas na singularidade de uma emoção. Eu, com os meus dez anos, pude entender a necessidade desta minha avó em querer ver o seu filho, seus netos, sua prole.



Fixo-me novamente nas recordações, no que sei de papai. Ele estava atemorizado em ver sua mãe, que corajosamente decidiu visitá-lo. Ela deixando sua vila, seus outros filhos que insistiram em fazer com que ela desistisse da viagem. Ela com oitenta e cinco anos, sozinha, com uma minúscula valise nas mãos, atravessando horas de vôo, acostumada apenas a andar de trem, veio até nós .

Depois de assear-se com um imenso lenço, abriu sua bolsa, e mostrou um pequeno embrulho que trazia nos braços, entregando ao meu pai. Ele desembrulhou ali mesmo, no saguão do aeroporto, e uma sonora gargalhada inundou o espaço, era como um presente inesperado do céu: um salame feito meses antes por ela e suas tias, um queijo de cabra e uma vasilha contendo um doce, uma mistura de maça e uvas passas, coberta com uma fina camada de massa folhada.

Entramos no velho stud baker , comendo os doces ali mesmo, e vendo minha avó paterna franzir o cenho, dizendo que o vinho que ela trazia dentro do seu velho casaco, a alfândega não deixou passar, para desespero do meu pai. Ela, que dizia tudo em italiano, e por isso, o meu pai tornou-se o intérprete oficial daquele encontro. Coisa bastante complicada, para nós que tínhamos que discernir de toda a emoção a diferença entre “adesso, siamo insieme”, das palavras lagrimosas do meu pai. Ela simplesmente fixava em nós seus olhos mais azuis, e sorria ,e não precisava de nenhum gesto ou palavra para nos mostrar sua felicidade.



Ela permaneceu conosco durante dois meses, faltando quinze dias para voltar para casa, ela teve um problema com sua saúde. Ela dizia que sentia uma pedra no estômago e que seu peito doía. Fizemos de tudo com a sua internação, e dois dias depois ela vem a falecer. Hoje penso nela como um pássaro, que veio buscar abrigo num ninho e permanecer aqui, do outro lado do oceano.

Veio nos mostrar o tamanho de uma saudade.


JU Gioli













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